quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O mundo de Carmem

   A cerâmica da sala é a chave do portal do mundo da viúva. Sentada numa cadeira de frente a uma televisão, trivialmente ligada, Carmem parece não saber o que se passa nos canais de TV. Concentrada na parede bem a sua frente, parece se desligar de uma rotina chata, e reviver em outra dimensão tudo que vivera um dia, retornando à certos pontos do passado, vendo e revivendo bons/inesquecíveis momentos. Hora está com o olhar triste. Séria. Outra hora parece esconder um sorriso do canto da boca, parecendo estar num bom lugar, com pessoa agradáveis. Chega a ser contagiante. Mas tem hora que os olhos da viúva se enchem de lágrimas, do nada. O corpo dela treme junto a dor que parece sentir. O olhar de Carmem nessa hora é de desespero. Parece um surto de realidade. É quando eu acho que ela retorna.

   Rodeada de pessoas em sua casa grande, no espaço, sobra espaços. Faltam as gentes que não ultrapassam mais os portões. Estão ausentes, porém, presentes. Aprisionados nas fotografias. O ambiente é triste. Mesmo com os contagiantes sorrisos de uma criança, os pedaços da casa e do quintal, estão sobrecarregados de imagens-invisíveis. O mundo de Carmem é, com toda certeza, mais suportável do que a realidade que vive.

   Minha lucidez é neblina comparada à rochosa mente da Viúva. Datas, nomes, lugares, pessoas... ela não esquece nada, nem  ninguém. Eu esqueço até de aniversário de familiares, mesmo contando os os lembretes das redes sociais, que também esqueço de consultar. Mas ela? Ela lembra de tudo. Carmem levanta da cadeira para sonhar à tarde, e à noite. A viúva adora receber visita de amigos, varrer a calçada de casa, e papear com a sua irmã - também viúva. Mas, corriqueiramente, Carmem está lá, sozinha, no comando da viagem pelo seu mundo: vendo as pessoas das fotografias da sala, abraçando os corpos quentes dos falecidos, e, vivendo outra vez tudo que é possível dentro dos sonhos, nos mundos imaginários. Mas a dor retorna. Com lágrimas e soluços. Com a mão enxugando forte as lágrimas que correm no rosto enrugado daquela senhora.   

   Essa é a jornada diária de uma mulher guerreira que já viveu as melhores fases de sua vida. Sentada numa cadeira, em uma sala improvisada na cozinha, Carmem passa a maior parte do seu tempo viajando num passado carregado de boas lembranças. São mais de oitenta anos muito bem vividos. Seis filhos vivos. Treze netos, cinco bisnetos, e um passado, apesar do peso da saudade e das lembranças, um passado lindo! 

Quando é difícil suportar o nosso mundo, as vezes, a 
solução é criar outro, e viver de sonhos. E viver nos dois.
   Carmem já suportou muitas dores na vida. A maior delas talvez tenha sido ter que enterrar um filho com 18 anos de idade. Mas continuar parecia mais fácil quando ainda tinha ao seu lado sua força maior. Os braços e ombros do seu fiel-companheiro de todas as horas: Antonio Targino. O velho obedeceu, com resistência, o segundo chamado da morte. Mas, como toda resistência não resulta em vitória, o velho morrera no segundo infarto. Dizem que é uma dor horrível. E deve ser mesmo. Pelos gritos e desespero no olhar de um homem que não chorava, nem fraquejava, nem temia a dor, foi essa dor terrível que derrubou o bom-Antônio, antes dos seus olhos de fecharem. Ainda assim o velho se foi do jeito que pedia a Deus: rápido, saudável e bem antes de definhar. E Carmem, credito eu, assim administra sua dor: viajando no mundo alucinante, onde as pessoas que amamos continuam vivas.


(Carmem soprou mais uma vela no dia 4 de novembro)

Nenhum comentário:

Postar um comentário